terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Venedikt Erofeev, um bebum genial


Eu morava em Moscou  e trabalhava  na Rádio Central, onde fazia locução de programas para os países de língua portuguesa. 1990 era um ano complicado na vida soviética, um revirar constante de situações, notícias escabrosas vindo à luz, homossexuais saindo dos guetos, ciganos surgindo dos porões, agenciadores de prostitutas antenados às portas dos hotéis e estações ferroviárias. E enquanto alguns autores também vinham à luz, com seus livros reeditados ou editados pela primeira vez, algumas vozes se calavam. Naquele ano morria um escritor marginalizado, esquecido propositalmente, de uma força descomunal e que, a exemplo do cantor Vladmir Visotski, sua obra era escondida nas gavetas de muitos dos poderosos do Kremlin. Não podiam admitir, mas muitos desses o admiravam. Eu preciva noticiar seu desaparecimento. Não pude.

Quem é esse escritor marginalizado e perseguido pelo sistema soviético? Certamente aqui no Brasil ninguém, ou quase ninguém sabe de sua existência.

Venedikt Erofeev (Венедикт Васильевич Ерофеев; 24 Outubro 1938) era uma personalidade lendária. Em 1970 editou em dois exemplares datilografados sua novela Moscou-Petuchki (Москва – Петушки), que em poucas semanas circulou por toda Moscou, varou regiões indevassáveis, penetrou fronteira a fora.   

Dele falava-se constantemente, mas pouco o conheciam realmente, mesmo porque ele sequer gostava de qualquer popularidade, principalmente de paparicos. E como vivia? Como conseguia tempo para escrever?  Trabalhava permanentemente. Nas obras em que trabalhava, quando escrevia, deitado no beliche de um vagão que servia de moradia para construtores civis, chegavam perto dele e perguntavam: “O que escreves? Por acaso queres entrar para a Academia? Seja como for, bem sabes que não conseguirás. Melhor encher a cara de vodca, aqui conosco.”

Filho de “inimigo do povo”, nascido na região de Murmansk, depois do curso secundário mudou-se para Moscou onde tentou uma vaga na Universidade. Conseguiu-a, mas um ano e meio depois era excluído por não freqüentar as aulas de “Preparação Militar”. A partir daí (1957), trabalhou nas mais diferentes funções: carregador numa loja de produtos alimentícios, ajudante de obras na construção civil, guarda, sondador-perfurador geológico, bibliotecário, e vai por aí. Mas o único trabalho que realmente agradou-lhe foi o de ajudante numa expedição parasitológica, na estepe Golodnaia (estepe da Fome), no Uzbequistão, e o de ajudante de laboratório de pesquisa científica para a luta contra insetos voadores e sanguessugas, no Tadjiquistão.

Começou a escrever a partir dos cinco anos. Sua primeira obra digna de nota são os Escritos de um psicopata, iniciados aos 17 anos. É a mais volumosa e absurda dentre tudo o que escreveu. Em 1962 Boa Nova, obra que alguns “especialistas” consideraram uma “confusa tentativa de criar um Evangelho do Existencialismo Russo”, tal como Nietzche, “virado do avesso”. Escreveu vários artigos sobre os noruegueses Hamsun e Byerson, assim como acerca dos dramas da última fase de Avicena. Todos eles foram recusados pelos editores porque eram “metodologicamente horripilantes”.
Nos últimos anos, tudo o que escrevia ia se acumulando em dezenas de cadernos e grossos manuscritos. Sua doença (câncer na garganta), revelada em 1985, adiou indefinidamente a concretização de seus planos.

Foi submetido a duas complicadas cirurgias, recebia uma mísera pensão por invalidez. Até os 50 anos, nem em sonhos poderia pensar em seu reconhecimento como escritor. Reclamava que rebaixaram seu grau de invalidez. Dos 50 rublos que recebia, passou a receber 26. No atestado escreveram que “assim e assado”, “pode ter por ocupação uma atividade de escriturário ou conforme os seus hábitos profissionais”. Mas ele acabava se conformando: “Pagam-me exatamente tanto quanto minha Pátria considera necessário.”

Seu aparecimento diante dos guardiões das regras éticas da escrita, por certo deixou alguns chocados pelos “mimos” de sua linguagem.  Não reclamava, apenas dizia que os maiores adversários de suas expressões, tanto na imprensa como na literatura, eram exatamente os que mais as utilizavam em suas reuniões e plenárias. Tinha idéias para tudo. Dissertava sobre a embriagues, sobre o sexo, sobre os poderes, sobre as mulheres. Em seu Moscou-Petuchki, único livro editado, fala das mulheres:

“Eu era contraditório. Por um lado gostava que elas tivessem aquela cintura, já que nós não temos cintura nenhuma. Isso provocava em mim... como dizer? Volúpia? Sim, despertava em mim volúpia. Mas por outro lado, elas retalharam Marat a navalhadas. Ora, Marat era incorruptível e não deveria ter sido retalhado! Só por isto já matava toda a volúpia. Por um lado, como Karl Marx, eu gostava da fraqueza delas, isto é, elas são obrigadas a mijar de cócoras, e isso agradava-me, enchia-me... bem, de quê? De volúpia? Sim, algo assim. Mas por outro lado, foram elas que dispararam  contra Ilitch! Isto matava novamente a volúpia: podem ficar de cócoras, mas para que disparar contra Ilitch? Seria ridículo falar de volúpia depois disto.”

Em 1973, Moscou-Petuchki foi editado em Israel, quatro anos depois na França, RFA, Estados Unidos, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Polônia, Iugoslávia. Em todos os países obteve sucesso, mas em Moscou ainda passava despercebido “oficialmente”.

Perguntado se se considerava um dissidente, respondia que não, que nunca tivera nada a ver com a história. Sempre viveu à margem da dissidência. A antimusicalidade dos dissidentes afastava-o, suas vozes não criavam harmonia.

Venedikt morreu. E quase não se noticiou. Quando propus. na Rádio Central, dizer uma notinha rápida sobre Erofeev, Pugachov, o editor, alertou-me. Não era salutar, não devia atiçar um fogo em vias de se apagar.
 
“E se eu morrer um dia  – e morrerei brevemente --  sei que morro sem ter aceitado este mundo,. Tê-lo-ei aprendido de perto e de longe, por fora e por dentro, mas morro sem o ter  aceitado. Morrerei e Ele perguntar-me-á: “Gostaste de viver por lá? Foi bom ou o quê?”. Eu ficarei em silêncio, de olhos baixos. Essa mudez é conhecida pó todos os que sabem o que acontece quando se sai de uma bebedeira duradoura e pesada. Não é a vida de um homem uma momentânea bebedeira da alma? Todos nós vivemos como que embriagados, só que cada a seu modo: uns bebem muito, outros bebem menos. E o efeito é diferente em cada um: um ri-se nas barbas deste mundo, outro chora ao peito do mundo. Uns já vomitaram e sentem-se melhor, mas outros só agora começam a ter vômitos. E eu, o que sou? Já provei muitas coisas mas nenhuma deu resultado. nem sequer me ri pra valer uma única vez, nem sequer vomitei uma única vez. Eu, que experimentei tanto neste mundo, tanto que já perdi a conta e a seqüência, estou mais sóbrio do que ninguém; só que já não me faz nenhum efeito... “Porque estás mudo? – pergunta-me Deus, envolto em relâmpagos azulados. O que responder? Continuarei assim, calado, calado...”

Espero que lá no alto Venedikt Erofeev tenha resolvido falar, para alegria de anjos e santos.

PS.  Traduzi o seu Moscou-Petuchki. Cadê editor?
 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Os passos de um penitente


Há no Brasil um rosário de histórias, muitas vezes incríveis, que passam despercebidas,e que poderiam muito bem suprir autores na construção de suas personagens. Há um mundo urbano a ser descoberto, há um mundo rural fantástico, que já nos deu autores magníficos como Ricardo Guilherme Dicke, Cornélio Penna, e continua apresentando como é o caso de Nicodemos Sena.
Pois bem, nos anos quarenta  surgia em peregrinação por alguns estados nordestinos uma figura penitente chamada Pedro Batista que acabará sendo a  mola principal para o desenvolvimento de uma pequena localidade baiana chamada Santa Brígida.
Não teve o mesmo destino de Antonio Conselheiro, e esse penitente que pregava e curava na terra natal de Maria Bonita, acabou por entrar para a história daquela gente, que até hoje o venera.
O jornalista e escritor Humberto Mesquita, sempre muito atento às coisas de Brasil (quem não se lembra do mapeamento do Brasil, que ele fez quando atuava no SBT, chamado “Isto é Brasil”?) foi buscar na história desse penitente os subsídios para escrever o livro Santa Brígida, onde se entrecruzam realidade e ficção.
Em seu livro a história começa no interior paraibano. Uma desilusão amorosa faz com que a personagem (que aqui atende por Paulo Calixto) que tinha tudo para seguir o mesmo destino de seus pares do campo, do eito da cana-de-açúcar, empreenda uma viagem pelos entrincheirados caminhos nordestinos, transformando-se em caixeiro-viajante, cargo que o tornará assassino e mudará a sua vida radicalmente.
O autor não encaminha sua personagem para o óbvio. Ou seja, para “esquentar o enredo”, poderia ter apimentado a situação com enfrentamentos políticos, religiosos, mortandades. Não, é o entendimento que permitirá que a personagem se desenvolva e acabe construindo uma história de pura poesia.
Humberto, que nos acostumamos a fazer poesia no vídeo, constrói em seu Santa Brígida, um verdadeiro poemário.

Serviço:  Santa Brígida – Humberto Mesquita, Ibrasa, 2009

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Deus de Caim, Ricardo Guilherme Dicke

Há que render elogios rasgados a um escritor que vê na boa literatura uma forma, ainda, de salvar o mundo. Nicodemos Sena não é somente um bom escritor, mas tomou para si a incumbência de rastrear a boa literatura e, o que é difícil, sem se submeter a qualquer apoio de ordem governamental. Criou a editora LetraSelvagem e com ela começa a mostrar um panorama literário do mais alto nível, reunindo autores como Olga Savary, Santana Pereira, Caio Porfírio Carneiro, Marcelo Ariel, o excelente poeta Edvaldo de Jesus Teixeira e Ricardo Guilherme Dicke. 
Todos aqueles que lêem a obra de Guilherme Dicke não economizam palavras para falar de suas qualidades literárias, da carga semântica que há num escritor que viveu a amargura do ostracismo, algo que, embora estranho, parece tão “natural” em se tratando de um país chamado Brasil, que pouco zela por sua memória e que apenas se “liga” naquilo que chamamos de imediatismo, naquilo que vira moda e certamente não ficará nos anais da arte de escrever. Sim, a mídia divulga agora o que amanhã não mais interessa e resta a nós, que ainda nos importamos com a literatura, revirar mundos e fundos para dizer dos que resistem e insistem em escrever.
Acaso fizermos uma relação de autores de qualidade que foram esquecidos, teremos que preparar um lençol e deixar do lado um balde, porque só nos resta chorar: Samuel Rawet , autor de Contos do Imigrante, que morreu solitário, em 1984, na cidade satélite de Sobradinho, perto de Brasília, e que, pese sua loucura, sua mania anti-semita, não poderia ter sido tão amordaçado;  Maura Lopes Cansado, autora de Hospício é Deus e O sofredor do ver, que amargou as agruras dos hospícios da vida; Salim Miguel, autor de Nu na escuridão, que poderia ser melhor observado, continua lá pelos lados de Santa Catarina sem que se saiba do peso de sua obra. Enquanto isso autores de obra irregular vão sendo estudados, apresentados como supra-sumo, encastelados. Um monte de fedelhos querendo ser escritores.
E por que seria diferente com Dicke, que transferiu-se do Rio de Janeiro para seu Mato Grosso natal, publicando de forma independente (os dois romances O salário dos poetas e  Rio abaixo dos vaqueiros)? 

Como surge Ricardo Guilherme Dicke no cenário literário nacional?

A história todos sabem: em 1967, o prêmio Walmap -- que fora idealizado em 1964 pelo banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e o escritor Antonio Olinto --  premiou esse escritor fabuloso, ao lado de Oswaldo França Júnior, com uma obra que satisfazia em cheio o objetivo do certame, que era descobrir obras acima do chamado nível comum.
Deus de Caim, a obra de Dicke foi recebida com entusiasmo. Era mesmo diferente. Na linguagem de aparente simplicidade, na elegância sutil de personagens que nada tinham de provincianas. Naquele ano havia sido lançado Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques que em duas semanas vendera 8000 exemplares, que também se alicerçava em laços de família e suas previsões de um fim anunciado; o Brasil perdia Guimarães Rosa e deixava de ser República dos Estados Unidos do Brasil para se tornar República Federativa do Brasil; acontecia a Guerrilha de Caparaó, era mesmo o ano da Psicodélia. 
Essa acolhida, portanto, refletia o momento. E esse momento está no livro de Dicke: tempo de desencanto por um país que não era mais um mundão de porteiras abertas; de um sertão que não era mais sertão, tempo em que a arte vertia lágrimas de dilemas, e onde sexo e morte não se estranham, não se fronteirizam. Naquelas páginas o mito bíblico homicida, fraticida, reaparece nas figuras dos gêmeos Jônatas e Lázaro, contaminados pela inveja, pelo amor/desamor, que gera situações conflituosas. É o mito de Caim e Abel, que por sua vez é uma reinterpretação do mito babilônico de Dumizi e Emkidu, onde o ciúme é o propulsor dos conflitos entre os povos sedentários (agricultores) e nômades (pastores).
O livro é inteiramente varado por frases elegantes, estonteantes mas peca muitas vezes pelo que podemos intuir como exageros narrativos, citações constantes. Claro que não fogem do contexto, mas acabam por quebrar o ritmo da leitura. Creio que é o pecado de parte importante de escritores quando começam a demonstrar erudição. Mas Dicke está perdoado, deve ser perdoado, porque no fundo, no fundo, nada disso que falo é importante, nada disso pode comprometer a sua escrita que é um alento, um sopro curativo, revigorante.
E já que a LetraSelvagem teve a ousadia – que coisa magnífica – de trazer a público essa obra monumental de Dicke, esperemos que nos traga dele tudo aquilo que nos foi negado, ou seja, as obras que ficaram no esquecimento.  
 
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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Carta a São Paulo

Outro dia o meu amigo cantor Zé Luiz Mazziotti falava da saudade de uma São Paulo que não mais existe. E puxou um coro de gente interessante, entre as quais Marilia Barbosa, a grande cantora e atriz. Pois bem, encontrei em meus guardados um artigo escrito por mim no já extinto jornal Folha da Tarde,  em 8/05/1992, a pedido do amigo Wladyr Nader, que organizava a coluna, que contou com personalidades importantes escrevendo um texto para a cidade. Está aí o meu:



A madrugada era fria e frios os olhares de teus edifícios envoltos pela garoa -- a garoa ainda fazia parte de tua poesia e nela os poetas arquejavam e tramavam seu canto de paixão e argamassa. E meu coraçãom paraibano mergulhava da poltrona quebrada do modernoso pau-de-arara para tua grandeza e indiferença.

A mala já pesava de saudade e angústia quando a mão amiga de Sadi Cabral -- o velho e querido Sadi -- veio em meu auxílio. Era Sadi quem me dava ciência dos olhares das fechaduras que rabiscavam a vida dos que passavam e pisavam duro em teu chão; com ele vaguei surpreso pelas surpresas de tuas esquinas, neguei às prostituas o amor pretendido e carregado de culpas, observei teus sobradões já carcomidos e ictéricos, transpirando bactérias doentias que o sereno dá e a fome cultiva. Ah, meus 17 anos...

Os primeiros anos foram duros, mas os sonhos nos ajudavam a seguir. O medo da grande cidade, Grande Cidade, se transformava numa alavanca que me levaria à militância comunista. Em teus porões conspiramos por uma vida melhor; penetramos teus labirintos em busca de homens para a nossa causa; cantamos teu dia-a-dia reascunhado em papéis amassados. E tu, São Paulo, te convertias num misto de amor e ódio. Foi então que, intrigados, acovardados, arrogantes, pobres coitados, outros homens chegaram desafivelando os cintos, apontando a metranca, engendrando novos mártires, afundando-te num beabá mal soletrado. Tutóia, tipóia do tumor, patamares da sanguinolência. Aqueles homens matando Vlado, amordaçando nossas palavras, campeando fantasmas em folhas brancas, torturando, impondo-nos a eterna paranóia. Palavras de manteiga passaram a cinzelar os versos que para ti, São Paulo, compúnhamos. Eram estranhas tuas tardes de mofo, quando os homens celebravam mortes em incenso e castiçal.

Os dias passaram, passamos nós pelos dias, tantos. Já a nuvem cinzenta era outra, ou meus olhos eram outros, sendo os mesmos. Tua paisagem cada vez mais desfigurada -- e meus olhos eram os mesmos, neon, bronze e cristais. O Tietê sucumbindo com nossos industriais dejetos, o Jaraguá desnudo já não sugerindo mistérios e a nuvem de fumaça escondendo os vagalumes que bem poderiam iluminar vidas. Houve vagalumes em São Paulo, não houve? Os homens, estes, aqueles, aqueloutros, brincando de suicídio com o revólver da sem-razão; a emoção ditando nossos passos e a noite, um imenso cuspidor de fantasias. E a chuva.

Hoje és torre de Babel, bordel, as retinas cansadas e os mesmos olhos. Nordestinamente doentias, as favelas são nódoas na colcha de retalhos da tua magnitude e parca magnanimidade; o humor dos cortiços canta a miséria indefinida -- os homens-gabirus jamais deixaram teu lixo.

Ah, São Paulo, qual a forma definida para se cantar a alma de uma cidade tuberculosa, teu rumor, os homens jamais te deixarão? Cantar os mendigos que tomam conta de tuas calçadas e fazem das marquises lares de poucas horas? Cantar esse amor-ódio-amor numa simples carta? Recurso falido, embora o uso do aplauso anônimo àqueles jeremias sem choro nem vela.

Ah, São Pálida desperdício de ilusões e quimeras, de amores incompreendidos, de novos profetas de viaduto que rezam para descer o jesuscristinho numa romaria de róseos querubins, graça e  perdão,  desvario de camelôs em suas bugigangas de tantas terras para lá da paraíba, china, oropas, frança, bahias, vasto céu de organdi.

No telão está o aviso: ó poeta, canta outras maravilhas!     

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Relato de Prócula

Há tempos um livro descansava em minha cabeceira. Aliás, uma pilha deles permanece intacta à espera do tempo que nunca consigo. Mas há poucos dias, terminada a tradução de Gente Pobre, de Dostoievski, que tomou-me dias e dias, olhei para aquela capa magnífica e prometi que o livro seria minha próxima leitura: Relato de Prócula, de W. J. Solha.
Conhecia o Solha de nome e imagem. Os conterrâneos me falavam de sua trajetória e eu retinha na memória o “bandido” de O Salário da Morte, primeiro longa paraibano – guardo com carinho uma cópia -- onde atuava um amigo, Edson Borges e me fascinara.
 Embora soubesse de sua obra, infelizmente não havia lido uma sequer. E eis que nesses dias de eleição me pego lendo o seu Relato de Prócula, lançado em 2009, que muito me entusiasma. E quando isso acontece é um problema, porque não consigo parar. E leio no ônibus, caminhando pelas ruas (às vezes esbarro com um poste) e até nos momentos que antecipam uma missa (pode?). Sim, fiquei mesmo entusiasmado, exultando por, finalmente, depois de um tempo, ter encontrado um autor que me proporcionasse esse estado de espírito. Logo eu, um cara tão chato, que nem os confrades de União Brasileira de Escritores suportam  
Os temas, que a um primeiro momento, parecem ligados à religião, nunca me interessam. Levam-me sempre a achar que fazem parte da mesma tralharia da chamada auto-ajuda, das enganações do Paulo Coelho, dos relatos psicografados (recentemente havia lido um texto “psicografado” de Claudia Prócula, onde fala de seus amores por Pilatos e de sua veneração pelo Nazareno.), mas ledo engano:  Relato de Prócula que tenho em mãos, desse sudernordestino magnífico, foge a qualquer dessas suposições -- às vezes infelizes. É um livro sofisticado, bem escrito que, embora destile certa erudição, nos remete a um mundo dificilmente imaginado por quem vive além fronteiras paraibanas, distante daquele recanto sabido e tido como árido, sofrível, inculto.
Ajudando-nos a desalinhavar o que estamos habituados a engolir – a narrativa sempre linear, blábláblá... --, Solha historia história e estórias, desarma aratacas bíblicas e nos faz sentir formigamentos a partir de uma carta que sugere o Nazareno como uma invenção romana para evitar a oposição judia ao regime estabelecido.
O pilar da erudição está num sacerdote cuja vida é marcada por altos e baixos, despudores, desamores, ressurreições, pecados e que, após participar de um auto onde interpreta Poncio Pilatos, tem a epifania: descobre o tão propalado período de silêncio de Jesus.
Há uma relação de personagens interessantes (ele, o padre, é apaixonante) excitantes, um descambar poético de falas e imagens que atestam a boa veia do autor, um desfilar de nomes reais numa constante ida e vinda de realidade e ficção. 
Num determinado momento da leitura questiono-me: como um homem com sua cultura (o padre Martinho Lutero) se abate com essa “descoberta ingrata”  e chega ao cúmulo do suicídio? Poderia apenas dar de ombros, seguir em frente com sua interpretação.  Mas aí está a genialidade do autor, fazendo com que o enredo não perca sua razão de surpreender,  de acentuar o mistério, de ser dramatúrgico mesmo.
Bom, Schopenhauer dizia que quando lemos somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar, de raciocinar, porque, quando lemos a nossa cabeça não passa de uma arena de pensamentos alheios. Seria isso, padre Martinho Lurtero?
Mas, bobagens à parte – desacostumei das resenhas --, quero alertar o leitor: procure imediatamente conhecer este Relato de Prócula, que é livro para se guardar ao lado do que há de melhor na literatura universal.  É bem escrito, atiça, incomoda, revela. Principalmente revela (para mim) o grande escritor que é W.J.Solha.
Era apenas um breve comentário.                        

sábado, 2 de outubro de 2010

Quando é besteira sonhar

Em 1980 fui convidado a escrever a trajetória de nordestinos em busca da cidade grande. Trinta anos depois a matéria está aqui. Para relembrar (a foto é daquele momento)


O sol que desce sobre a cidade penetra na pele. Brilham os telhados de lata. Olhares me perseguem na plataforma enjoada: são mendigos e ciganos os que partem, os que ficam, os que choram à janela do ônibus com as mãos em apertos recíprocos. Tudo me constrange porque não tenho ninguém para chorar ou saudade alguma para sentir.
Espremo-me no balcão de um bar imundo e disputo espaço com as moscas e abelhas que se afundam no açúcar espalhado pelo chão. Tomo um café requentado e busco conversa. Observo rostos e falas. Um homem diz que perdeu tudo e que precisa fugir do lugar, que é duro suportar o sofrimento de ter que deixar mulher, filhos, ainda que reste a palavra de homem de que logo voltará para buscá-los. Esse homem de 30 anos, roupa cáqui e cinco filhos tem olhos de cinqüenta, pele de sessenta, mãos calejadas, uma úlcera aberta no tornozelo.
A calçada engordurada e esburacada suporta o equilíbrio de centenas de pés trêmulos. A emoção no ar e a espera pela saída do modernoso pau-de-arara.
-- Olha, moço, estamos cansados de oração, tantas léguas andadas, tanto calado lacrado aqui dentro da gente. A reza não dá jeito, a penúria não tem solução. Amanhã melhora, amanhã melhora, mas esse amanhã nunca chega. É igualzinho ao canto da carimbamba que a música entoa. Estou indo com a família, carregado de tristeza e de saudade. Tenho um irmão em Jacareí que trabalha em olaria. Eu sempre vivi na plantação, trabalhando no eito, de sol a sol. De uns anos para cá, perdi tudo e quase fico sem a terra que meu pai me deixou -- que Deus o tenha em bom lugar!
Esse Sebastião tem 40 anos, é proprietário de quatro alqueires de terras em Aroeiras, região do cariri paraibano. Plantava algodão e feijão.
Ainda encostado no barzinho da estação, espero a arrumação das bagagens e a conferência dos passageiros. Trinta e seis retirantes farão desse ônibus seu novo lar.  Ao olhar para trás vejo acenos e lágrimas.
-- Escreve logo, por favor!
-- Cuidado com as crianças!
-- Vão com Deus, Maria e José!
O ônibus deixa a estação e trafega pelas ruas movimentadas de Campina Grande. Em pouco tempo a zona rural se apresentará com sua paisagem de pedras, a caatinga, o sertão.
Rostos sorridentes, rostos chorosos, a cidade ficando para trás, o ônibus ganhando estrada e os prédios se perdendo na linha do horizonte. Os olhos embaçados, o peito trancado, a garganta dando nó. Ajeito-me como posso.
E o ônibus rodando, comendo estrada, passando pela vermelhidão dos campos, pedras multiformes endurecendo o caminho, levas de retirantes, caminhões e cargas, emoção. O céu azulando e o chão seco e o chão seco, e as plantas pedindo água, e cacto, cacto, cacto. O ônibus rodando pela estrada que nos leva para o sul, uma linha comprida, infinita. Arbustos de verde fosco, cercas de arames enferrujados, montanhas, o gado faminto, o gado magro, o gado caveira, o gado carcaça. Gado e gente.
O menino diz que está com fome. Tem oito anos e parece esperto. Olhinhos apertados de menino arteiro. Passeia pelo corredor do ônibus, mexe com as pessoas e nem se dá conta do destino das tantas horas a serem percorridas. Quando crescer e for aquele “baita homão”, vai ser “piloto daquele avião que passa todo meio-dia em cima da casa da gente”.
O carro sem parar, desembestado no meio do mundo. E o vento entrando pelas janelas, dançando, secando as lágrimas que ainda restam em alguns olhos.
A paisagem mudando. Ora um imenso tabuleiro de veludo, canaviais; ora uma imensa chapada seca e careca.
Toritama é uma pequena cidade pernambucana às margens do rio Capibaribe, cantada por João Cabral, o poeta. O rio é quase nada. Nas poucas poças, as mulheres de seios à  mostra, fazem festa. Coxas roliças em movimento. Lavadeiras que ficam para trás com sua mentira de água.
E novamente a caatinga, terras vermelhas, nenhuma alma vivente.
-- Olha ali, moço, um homem de pedra!
-- É Lampião, meu filho!, responde o motorista Dorival.
Dorival tem o aspecto bem cuidado, unhas feitas, uniforme impecável. Guiará nosso destino até Maceió. Tem bom papo. É tabelado na vida. Nem sabe dizer ao certo quantas viagens realizou. Em cada uma delas uma lembrança, uma tristeza calada, um jeito sem jeito que dar. É contra as idas e vindas do pessoal. Conhece um rapaz de Guarabira que já viajou umas quarenta vezes pro sul. Passa um mês e volta. Está para conhecer um que tenha se dado bem. Dirige com atenção. Fuma muito, mas não bebe. Amanhã mesmo estará de volta a Campina Grande.
Anoitece. Percorremos as terras que divisam os estados de Pernambuco e Alagoas. A maioria dos passageiros está calada. As mães ajeitam os filhotes como podem. O motorista avisa que teremos uma parada para o jantar. Dorival será rendido, segundo o jargão que os motoristas usam.
O lugar da parada fica nas cercanias de Maceió. Um vento frio vasculha a alma, traspassa os vidros das janelas, umedece o coração. A lua arrogante brilha no céu. Parados, observamos o eterno trafegar de faróis que encandeiam.
-- Moço, um cheesburguer.
-- Um o quê?
-- Um cheesburguer.
-- Isso aí não tem não, senhor.
Percebo minha ignorância. Nas prateleiras, bolinhos de carne endurecidos de banha. Moscas em festa na disputa do pouso.
-- Um refrigerante.
-- Vai do quê?
-- Uma Coca-cola.
-- Tá em falta. Só tem Mirinda.
Olhares desconfiados espiam aquelas prateleiras. O bar é uma espelunca. A sujeita eleva-se com o cheiro de carne dormida.

* * *
A viagem recomeça. Muitos nem comeram, ficaram na ração, não se pode gastar com tolices, qualquer coisa engana a barriga. Leite para as crianças e só.
A lua vai acompanhando a trajetória do ônibus. Há silêncio, as crianças dormem, sonham o sonho dos justos.
-- Já passou o São Francisco?        
-- Não. Ainda tem muito chão.
-- E essa água?
-- É o rio Sergipe.
Israel é um jovem de 19 anos. Guarda consigo um olhar amargo. Jamais saiu de Matinhas, distrito de Alagoa Nova. Não tem idade para lembrar de mim. Desde pequeno tem vontade de viajar. Trabalhou na enxada noite e dia, já desfibrou muito agave. As marcas estão nas mãos. Uma hora decidiu e resolveu seguir o coração. Vai para São Paulo tentar a sorte, ainda que não conheça ninguém por lá. Tem alguns amigos, é verdade, mas lhe faltam os endereços. Parte deixando saudades. Duas: a mãe e Joana, sua namorada. Pode ser que volte daqui há dois anos.
O rio Sergipe corre mansamente, com suas rãs entoando o canto noturno das águas que vão em busca do mar.
É tarde. Durmo um pouco, mas acordo com o tumulto dos passageiros. Vai se aproximando o rio São Francisco.
Atravessamos o velho Chico, cansado de tanta água, de tanta guerra, numa escuridão medonha. A curiosidade dos passageiros é tamanha que o motorista não se faz de rogado e para para que todos o vejam. Coqueiros balançam, dançam e cantam com o vento madrugador, e as águas seguindo para o mar.

* * *                  

No segundo dia de viagem amanhece chuvoso. A Bahia diante de nós. Parada para o café que tem gosto de vinagre. O céu é escuro, cinzento e a tristeza nos olhos encardidos dos passageiros. Diante do restaurante as poças de lama acatam moscas famintas. Há frio, cheiro de cocô, mijo e carne podre, e as portas do céu cada vez mais trancadas. O ônibus parece o mais sujo de todos os chiqueiros do mundo. Começa o festival do choro: as crianças já sentem o peso da viagem. Enquanto isso, fico a me perguntar quanta ilusão não comporta o coração desses infelizes. Pensa-se em tudo e em nada. E o carro rodando, perfurando o vento, descobrindo novas paisagens, se aproximando cada vez mais da ilusão final.
-- Quanto custa a bolsa, senhor?
-- Cem cruzeiros, porque é pra moça bonita.
-- Embrulha uma.
Maria José tem 16 anos e acompanha a mãe que vai se submeter a uma cirurgia. O médico falou que é coisa delicada, que na Paraíba não tem condições de cura. Diz que a bolsa servirá para juntar dinheiro na cidade grande. Percebo a ilusão enquanto Josué brinca. É um bonito rapaz, mas de mãos que denunciam sua luta diária. Diz que brinca para enganar a saudade.
O que é mesmo a saudade? Afastar-se da nesga de terra onde nasceu, cresceu e sofreu? Josué me fala de sua família numerosa, dos amanheceres cotidianos, do peso da enxada, mas também da alegria do convívio, da união na dor e no sofrimento.
Sua conversa me chega como um vídeo. Rememoro Vidas Secas, a busca do homem por melhores dias, a tristeza dos olhares das crianças que não conseguem entender a penúria mas acabam convivendo com a dureza da terra:  nenhuma diferença entre homem o gado. Gado e gente a padecer da mesma forma.
                
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Estamos em Feira de Santana, diante de um restaurante que se torna um formigueiro humano. Na calçada as ciganas fazem roda, querem ler o destino que está pregado na palma da mão das pessoas. Ostentam, de cara, uma pobreza de Jó e sua riqueza parece ser mesmo a esperteza.
-- Cuidado com elas, Maria. São umas trambiqueiras. Segura a bolsa!
E elas esconjuram o garoto brincalhão.
Saímos de Feira sob um calor abrasador. O ônibus foi limpado, o que nos dá mais ânimo. À frente, divisamos um pasto onde se amontoam restos de animais, imagens da seca.  E seguimos engolindo o asfalto decadente da Rio-Bahia, o carro embalado, o povo enfadado, o corpo quebrado, as caras de dó. Nas ribanceiras o bananal seco, estéreo; na estrada crianças exibem jibóias. Quem compra cobra?
O verde aparece, as serras ostentam imponência, vestidas como estão de azul arroxeado. Uma pergunta: e a seca para onde foi?
-- Lá pros lados de Olivedos havia muita fartura, muita segurança espalhada pelo tempo. De repente, como uma praga, tudo secou. E secou tudo: esperança, vontade, gosto... Dava dó, a penúria chegando, os animais morrendo, a terra rachando, o massapé secando, as pessoas brigando com os bichos, disputando com os bichos, lutando por palma, macambira e facheiro. E as aves voando, fugindo; os imbuás se escondendo, a terra ardendo. Só as cobras se arrastando pelos serrotes, com a pele caindo. A gente só via o tempo com ar de fumaça. Ô eito desgraçado!
Firmino conta que já descamba nos trinta e  é solteiro, que vai à procura do irmão. Não tem endereço, sabe apenas que mora na Vila Formosa.
-- Quem tem boca vai a Roma.
Sim, quem tem boa vaia Roma
Já Nicácio tem boas lembranças, parece instruído e é com ele que tento a conversa mais séria. Cursou o ginasial e simpatizou com o partido comunista, mas teve receios.
-- Em 1970 o presidente da República falou em tom emocionado que não se conformava com o sofrimento nordestino e que as coisas tinham que mudar, mas ele não sabia que o nosso chão estava contaminado com a esquistossomose, que havia mortalidade infantil além da conta, que havia desnutrição. Mais que tudo, não se importou com a má distribuição de terras. Nenhum deles.
Nicácio me leva ao passado, me traz de volta a luta das agitadas ligas camponesas, os teóricos da reforma agrária, os futurólogos, Nêgo Fuba, um dos primeiros mártires do movimento agrário em terras paraibanas.
A angústia parece me vigiar. Fixo os olhos na distância e escuto o eco esganiçado das filhas das caatingas. Cigarras?
A região seca novamente. Tudo desolado. Mato, só mato. Nada além. Acaso amanhece cinzento é intenção de chuva, mas as nuvens não enganam mais, e o vento, nada camarada, a carregá-las para longe.
Absorto nos pensamentos, demoro para ver que ao meu lado uma criança cobiça meu chocolate. Dou-lhe. De seu nariz, laivos de catarro verde-escuro escorrem sem parar. Barriga grande, pernas finas, cabeça de balaio. Chama-se Laurentino, atende por Lino. Não sabe para onde vai.
-- Um lugar lá longe, que minha mãe diz ter muita comida, muito carrinho de lata. Vou ficar sem graça, não tem o Tinhoso pra brincar. É meu cachorro, sabe? Mãe diz que ele não quis vim com a gente, ficou com a vó Maria.
No fundo do carro um grupo de rapazes conversa. Eles riem, contam anedotas, tempos de fartura, o engenho, o bangüê, a casa de farinha, estórias que seus pais contavam, onças bravas, mulas-sem-cabeça, o ronco do primeiro avião que rasgou os céus nordestinos:
-- Diz que uma barulheira danada se aproximava e todos corriam, choravam, se escondiam dizendo que era o fim do mundo, que os anjos não tardavam com suas trombetas de fogo desenhando no céu a perdição dos dias; as mulheres a confessar a seus maridos as traições praticadas, ladrões a penitenciar-se e o ronco danado no meio do mundo. Era apenas um avião.
Inácio Ventura tem muitas estórias desse tipo. Estudou até o terceiro ginasial. tem consciência das dificuldades do país. Conversamos longamente. Separou-se da mulher, não tem filhos, não corre da seca. Mora no brejo e e o que se pode chamar de politiqueiro. Acha que o Nordeste só recebe ajuda governamental via televisão, porque longe do vídeo está jogado às traças.
Nos confins da Bahia, a surpresa: chove, mas é uma chuvinha somente, como dizem os mais velhos, que molha pouco embora dê pra encher o pote.
Jequié é excomungada do mapa pelos preços exorbitantes. O pessoal da região também vive da miséria dos que por ali passam à procura de vida.
Na porta do restaurante há uma disputa ferrenha por fregueses. Vinte minutos são suficientes para esticarmos o corpo, sem necessariamente enchermos a barriga. A maioria se farta de laranja e banana. Um banho rápido por quarenta cruzeiros, e o medo de “pegar doença ruim”.
                
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É tarde e o sol ainda alto; os rapazes se distanciam da solidão, fogem às lembranças, sorriem falsamente amarelo. A vontade de chegar já se evidencia.
-- Não gosto dessa gente que anda com esse trambolho (o gravador) debaixo do braço, arremedando a gente. Pode-se dizer besteira e não tem jeito de negar.
Matias não gosta do gravador. Não vai com a minha cara, é evidente. Tem 25 anos e certa vez foi envolvido em questões de terra, ludibriado por um gravador, segundo ele. Os demais não me questionam.
Minas Gerais se aproxima e tem uma paisagem decadente, diferente, praticamente despovoada. A noite mostra um céu carrancudo, os vaga-lumes piscam. É difícil não sentir saudades de uma cama quentinha.
A senhora que viaja ao meu lado não pregou os olhos desde o início da viagem. Como consegue?
-- Meu filho, tô indo pra São Paulo fazer um tratamento médico. Vou voltar logo, não posso deixar meu velho sozinho. Coitado, ficou chorando muito quando parti. Não posso dormir, pus na cabeça que a qualquer momento o ônibus vira e  morro sem ver.
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Teófilo Otoni é parada obrigatória. Um monte de desajustados pede comida Volta a lembrança do Nordeste. Os passageiros não entendem, talvez por que nunca tenham imaginado que por aqui existam mendigos. A plataforma de desembarque é suja, a lanchonete nunca foi varrida, pois há lixo por todos os quadrantes.
Quando a nova noite chega a lua some e o ônibus perambula ensaiando ziguezagues, tenta se livrar das depressões. O tacógrafo frequentemente registra,  com seu alarme, a ultrapassagem dos 80 km. Waldick Soriano canta no radinho de pilha do casal em lua-de-mel. Entristece a noite com seus gemidos de macho traído.
A cidade de Realeza aparece e é fria demais. Àquela hora a estrada é calma, as jamantas dormem nos beirais do asfalto. Logo mais o tráfego se intensificará. As crianças dormem.
Quando amanhece estamos em Além Paraíba e paramos para o café. Armados de escovas empastadas e toalhas ao ombro, os passageiros comprimem-se no banheiro mal cuidado do restaurante. O Nordeste já foi esquecido, esquecidas a fome, a seca, a família. Foi há cem anos que partiram?
O rio Paraíba requebra docemente pelos vales. São Paulo se aproxima.
-- Já passou Aparecida?
Em Guaratinguetá o almoço no restaurante 3 Garças. Faz calor. Tomo cerveja e penso se voltarei a fazer uma viagem assim, cheia de emoção e atropelos. Conseguirei exprimir tudo isso num papel? Quando e onde  encontrarei gente tão gente como essa com quem tenho partilhado tantas horas? Quando deles viverão ou  voltarão? E eu? 
Avistamos Guarulhos e já sentimos a poluição a se espalhar, manchando o ar. Os passageiros se acotovelam. A Dutra é um verdadeiro inferno, tem uma revolução de automóveis. São Paulo à distância é apenas uma nuvem cinzenta com uns poucos edifícios a perfurá-la.
***
As ruas movimentadas da cidade, com seus prédios estranhos, seu trânsito infernal, suas procissões de pedestres. O ônibus para na Rodoviária do Glicério: 30 de junho de 1980. Mal consigo levantar-me. A maioria desce, procura seus objetos, tonto estão todos com aquele batalhão de motoristas a oferecer táxi.
Desço. Despeço-me de alguns.
-- Quando sai escrito isso que você gravou?
-- Não sei, respondo.
Olho pro céu. Não o vejo, pois o viaduto o encobre. Sei que faz sol. Pego minha bagagem e saio em pressa. Do outro lado, um amontoado de gente que  volta para suas terras.
À saída observo uma senhora jovem, três filhos, encostada numa das vigas de cimento da rodoviária.
-- Deu tudo errado, moço. Quero voltar e não tenho como. Fui largada pelo marido e o único jeito é bater na porta do meu pai. A moça da assistência tá resolvendo o caso, foi besteira ter sonhado alto demais.
Ela quer voltar, desencantou-se com o Eldorado.
Sacudo a poeira.


quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Em defesa do artista


Um dia Marisa Gata Mansa contou-me, entristecida, de uma passagem sua na Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro. Depois de sair, milagrosamente, de um longo período de enfermidade, resolveu fazer o que sabia -- cantar -- e procurar os meios que poderiam lhe dar respaldo. Na Secretaria foi atendida por um garotão que disse: “a senhora deixe um currículo que o examinaremos”. Bah, o idiota, atuando na Secretaria de Cultura de uma cidade como o Rio de Janeiro, que sempre quis ser a Capital Cultural do país, desconhecia o nome de Marisa e sua trajetória na música brasileira! Uma piada! 
Quando me contava isso, seus olhos enchiam-se de lágrimas, até porque não entendia tanto descaso, não aceitava esses assassinatos em vida de tantos outros artistas.      
O episódio é relembrando aqui, porque fui surpreendido recentemente com a notícia de que Carmélia Alves teria ido para o Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro.
Conversei com Cervantes, velho amigo -- meu e dela. Sim, era verdade. Sem condições de arcar com as despesas do apartamento alugado em Copacabana, não teve outra opção.
Como Carmélia, outros tantos artistas penam com o descaso. Público e Particular. Alguns nomes conhecidos já partiram dessa sem que nem mesmo a imprensa noticiasse.
Em São Paulo um desses sabichões que vivem para se apossar do que não lhe pertence, deixou os artistas de São Paulo sem sua Casa, o que existe hoje é uma rua com o nome de “Casa do Ator”. Ironia.
Isso será sempre assim. Os políticos estão mais preocupados com suas questões pessoais ou em colocar seus nomes em placas do que oferecer qualquer ajuda no sentido de preservação da memória nacional. Eles nem sabem do que se trata. E o sei por experiência própria, dado que tive oportunidade de discutir com vários deles.     
Quando dirigi os eventos na cidade de São Paulo criei -- sem que houvesse interferência de gabinetes -- um espaço musical onde vários dos nomes esquecidos puderam se apresentar, entre os quais Moreira da Silva, Ademilde Fonseca, Emilinha Borba, a própria Marisa Gata Mansa.
O que fazer hoje em dia? Esperar que apareça uma Carmem Costa e insista na decisão de requerer o seu tombamento? Pena que no Brasil tombamento signifique derrocada, queda. Sim, tombar no Brasil é derrubar, literalmente.
Creio que agora é o momento de nos juntarmos e requerermos o tombamento (com direito a uma boa pensão) de nomes como Carmélia Alves, Carminha Mascarenhas, apenas para lembrar de duas grandes cantoras que estão no esquecimento. Quem topa?